Artigo: Onde estão nossos heróis negros?

História e heróis

Toda história é dimensionada por quem a conta. O que contamos hoje sobre o passado é fruto de escolhas tomadas em contextos sociais, morais e políticos de uma época. E não é diferente quando o assunto é "Quem são nossos heróis nacionais".

Vamos fazer um exercício: pare de ler este texto por três segundos e diga em voz alta, e rapidamente, o nome de três heróis nacionais que você conhece. Falou? Mas falou os primeiros nomes, não ficou pensando muito, não, né? Então, tenho certeza que dos nomes que vieram em sua mente, pelo menos dois eram homens brancos.

A cor da pele de muitos brasileiros e brasileiras que mudaram os rumos do país foi e continua sendo um critério para sua ausência e apagamento da nossa história e nossa cultura.

Para ser mais didática, vamos em ordem cronológica: o que você sabe sobre os quilombos no Brasil? Você aprendeu alguma vez, na escola, que lá habitavam grandes guerreiros, heróis que lutavam para salvar seu povo? Ou te ensinaram que um quilombo era onde os "negros fujões" se escondiam?

Um quilombo é um lugar de resistência, onde viveram grandes heróis nacionais, mas que muitas vezes não são descritos corretamente nos livros. O mais famoso deles, o Quilombo dos Palmares, foi, de 1595 a 1695, um modelo de organização socioeconômica que se contrapôs ao sistema escravista. Em Palmares viveram dois grandes heróis negros: Ganga Zumba, líder de Palmares até 1678, quando foi morto após as dissidências no quilombo pela questão de um acordo de paz com os portugueses; e Zumbi dos Palmares, que assumiu o cargo em seguida, até a destruição do quilombo, em 1694.

Agora imagine se pessoas brancas lutassem contra um sistema opressor, contra exércitos e bandeirantes, reunissem mais de 20 mil homens e mulheres brancos em uma sociedade organizada - isso estaria contado de qual forma nos livros didáticos? Como um espaço de resistência, ou como um espaço onde se escondiam os que fugiam de algum lugar?

A cor da pele de muitos brasileiros e brasileiras que mudaram os rumos do país foi e continua sendo o critério para sua ausência e apagamento da nossa história e cultura.

Você sabe quem foi Luiz Gama? Jornalista e advogado, foi responsável pela libertação de muitos escravizados ainda antes da escravidão ser abolida no Brasil. Sabe quem foi Aqualtune? Mãe de Ganga Zumba, ela dedicou sua vida ao desenvolvimento do quilombo e à defesa de seu território contra invasores. Lembro ainda de Tereza de Benguela, que coordenava o Quilombo do Quariterê, maior do Mato Grosso. Antonieta de Barros, jornalista, fundadora e diretora do jornal “A Semana”, foi a primeira mulher negra eleita deputada federal no Brasil. São tantas heroínas e tantos heróis negros que ainda não têm o devido lugar nos livros didáticos brasileiros...

Além do apagamento dos personagens, tem ainda o apagamento da importância de pessoas negras em episódios históricos como, por exemplo, a Revolta dos Farrapos, que aconteceu de 1835 até 1845. Foi uma revolução regional, de caráter republicano, contra o governo imperial do Brasil, na então província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Mas o que pouco falam nos livros de história é sobre o papel dos 'lanceiros negros'. Eles eram homens negros que lutavam ao lado dos republicanos contra o império brasileiro. Eles foram para a batalha em busca das suas liberdades e do fim da escravidão, mas foram usados como “escudos”, em um momento conhecido como Traição dos Porongos.

“No conflito, poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro”, declarou uma carta enviada por Duque de Caxias ao comandante Francisco Pedro de Abreu.

O massacre foi resultado de um acordo entre um chefe dos farrapos e Caxias. Eles sabiam que esses homens negros estariam desarmados. Mais de 100 lanceiros negros foram mortos em um ataque orquestrado. A polêmica entre os historiadores é que esse ataque aconteceu devido a um acordo entre republicanos e o império brasileiro.

São inúmeros os fatos e personagens negros apagados da nossa história. Daí o papel fundamental da escola nisso tudo. É lá onde as crianças socializam e constroem significados.

A escola não deve ensinar que "negros são descendentes de escravos". Ela deve ensinar que nós, pessoas negras, somos descendentes de pessoas comuns que foram escravizadas, sequestradas da sua terra natal, e obrigadas a trabalhar forçadamente, sendo separadas de suas famílias e tratadas como objetos pertencentes a um dono. Percebe a diferença?

Em nosso imaginário, o herói é aquele personagem que vem para nos salvar, e possui todas as qualidades necessárias para superar, de forma excepcional, todo e qualquer problema. Associar esse ser "todo poderoso" a pessoas negras é construir um imaginário coletivo de que nós, negros, também somos capazes de superar, de conquistar, de vencer.

Exaltar a importância dos heróis negros que ajudaram a construir a história do nosso país é fundamental para que nossas crianças sejam futuros adultos conscientes de que nunca foi sorte ou azar, sempre foi uma questão racial e econômica.