Rosalina Soares reflete sobre o Saeb 2021
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Na última sexta-feira, 16/9, o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) divulgou os resultados do Saeb 2021 (Sistema de Avaliação da Educação Básica), relatório que traz indicadores sobre a aprendizagem de estudantes do país, após quase 2 anos de escolas fechadas e ensino remoto. Tais informações e possíveis leituras críticas delas permitem que políticas públicas para as redes de ensino sejam mais precisas e eficazes no combate aos enormes desafios que a educação brasileira enfrenta.
Confira os resultados do Saeb 2021 aqui.
Além de aspectos como o índice de alfabetização, a taxa de resposta de estudantes e quais estratégias de ensino foram adotadas durante a fase mais aguda da pandemia, um dos recortes explorados pelos dados diz respeito à taxa de insucesso, que reúne os números relacionados a reprovação, somados aos de abandono.
Tais números costumam reforçar um cenário que é, historicamente, bastante preocupante no 3º ano do ensino fundamental. No entanto, ao compararmos os números de 2019 (um cenário anterior à pandemia) com os de 2020 (durante a pandemia), vemos uma queda substancial na taxa de insucesso no 3º ano - de 8,6 para 1,6, respectivamente.
Será que isso sugere uma melhoria na educação do Brasil? Justamente durante o período em que a realidade se apresentou de maneira especialmente hostil e desafiadora?
Rosalina Soares, gerente de Pesquisa e Avaliação da Fundação Roberto Marinho, falou sobre esses e outros pontos do Saeb 2021 em conversa que você confere a seguir.
Hugo Rosas: Qual é a sua leitura sobre a queda acentuada da taxa de insucesso dos estudantes?
Rosalina Soares: A taxa de insucesso no 3º ano do ensino fundamental costuma ser a maior mesmo - é um desafio histórico. Quando a relação com a escola se tornou mais fragilizada, por conta do necessário isolamento social a que estudantes e corpo escolar foram submetidos durante a pandemia, o desafio aumentou. Como vemos nos dados divulgados agora, comparando-os com os dos anos anteriores, houve uma queda na taxa de insucesso.
Se conectarmos essa informação à recomendação do Conselho Nacional de Educação (CNE), pelo Continuum curricular e aprovação dos estudantes, vemos que a queda da taxa de insucesso reflete a decisão dos gestores públicos em um contexto de riscos enormes de abandono escolar, em função das desigualdades de acesso à educação, no período de fechamento das escolas. A meu ver uma decisão acertada, mas que inviabiliza a comparação da taxa de insucesso de 2021, com os anos anteriores.
Hugo: Como interpretar esta edição do Saeb, então?
Rosalina: O Saeb leva em conta a Matriz de Referência, que sinaliza o direito de aprendizagem dos estudantes. Em 2021, a Matriz do 2º ano do Ensino Fundamental teve alinhamento com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). No 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e no 3 º ano do Ensino Médio, em Língua Portuguesa e Matemática, a referência foi a Matriz de 2001. É importante destacar que, nos próximos anos, o pais precisa garantir o alinhamento do Saeb com a BNCC em todas as etapas de ensino.
O Saeb utiliza a Teoria de Resposta ao item, uma metodologia que permite comparar os resultados ao longo das edições. É uma avaliação posicional, colocando o estudante em uma escala, junto às habilidades que ele desenvolveu. Contudo, comparar a edição de 2021 com as demais não é recomendado, porque a aplicação dos testes ocorreu no final de 2021, quando parte das redes de ensino não tinham retomado as atividades 100% presencial. Naquele momento, muitos estudantes perderam o vínculo com a escola.
Diante dessa situação, a taxa de participação de estudantes foi menor do que nos anos anteriores. E temos a hipótese de que a queda na taxa de participação se deu, sobretudo, para o estudante mais vulnerável, que teve menos oportunidade de acesso às atividades escolares no período de fechamento das escolas.
Hugo: Durante o auge da pandemia, por exemplo, a importância desse tipo de informação ficou ainda mais evidente...
Rosalina: No final de 2020, tivemos em torno de 1/4 dos estudantes das regiões Norte e Nordeste sem atividades escolares - 8 meses sem qualquer contato com alguma atividade educacional. Além disso, várias pesquisas sinalizaram um percentual elevado de estudantes que abandonaram a escola em 2020, como mostram os dados da Pesquisa Juventudes e a Pandemia (confira a pesquisa aqui).
Mas não posso deixar de mencionar o grande esforço do país em realizar o Saeb de 2021. O contexto era desafiador, porque os protocolos sanitários se faziam necessários. As redes estavam retomando as atividades e fazendo um importante trabalho de acolhimento dos estudantes, além da busca ativa. Não foi fácil realizar essa edição. O que mais importa agora é a utilização dos dados da avaliação para apoiar a estruturação de políticas de recomposição da aprendizagem.
Hugo: Outro ponto que vale destacar é relacionado às crianças que estão no processo de alfabetização. Mais precisamente aquelas e aqueles que concluíram o 2º ano do ensino fudamental e estão, agora, no 3º ano.
Rosalina: Essas crianças passaram o início do processo de alfabetização em casa, longe das escolas. E há evidências nacionais e internacionais que mostram que a alfabetização necessita de mediação, de metodologia. Essa geração necessita de acompanhamento, pois a alfabetização é a base para a trajetória escolar de sucesso. Ano que vem, boa parte dessas e desses estudantes estará no 4º ano - e teremos a aplicação de outro Saeb. Só que o Saeb não avalia todas as séries. Se seguir organizado como é hoje, avaliará 2º, 5º e 9º anos do ensino fundamental, além do 3º ano do ensino médio. Insisto que essa geração precisa de atenção especial dos sistemas de ensino, e a avaliação terá uma importante função na recomposição da aprendizagem.
Hugo: Fica comprometida, portanto, uma análise mais fina da trajetória dessas pessoas...
Rosalina: Sim. Tenho um receio grande de essa geração se tornar invisível para o Sistema. A trajetória dessas crianças depende muito dessa base, da alfabetização, que sofreu um forte impacto em função da pandemia. Por isso, a política de recomposição precisa estar alinhada a avaliações sistemáticas. Caso contrário, no decorrer do tempo, veremos a taxa de insucesso aumentar.
A geração que está passando pelo processo de alfabetização durante a pandemia tem o direito e a necessidade de ser avaliada com frequência.
Além dos estudantes, como estão professoras e professores?
Hugo: Imersos nessa complexa realidade estão as professoras e os professores, que tiveram de se desdobrar ainda mais para conseguirem fazer com que os estudantes seguissem tendo contato com as atividades escolares.
Rosalina: Professoras e professores usaram seus próprios planos de dados, Whatsapp, compraram aparelhos, adaptaram conteúdos para o trabalho remoto - fizeram de tudo para que os e as estudantes tivessem alguma vivência escolar, especialmente as mais pobres. Não podemos esquecer que o Saeb foi aplicado em novembro e deembro de 2021. E, de lá para cá, as redes têm atuado fortemente para identificar os principais desafios para, com isso, estruturar atividades pedagógicas que permitam essa superação.
O Saeb pode ajudar a definir as políticas e estratégias mais urgentes. Infelizmente ainda não temos um resultado fácil de ser compreendido, com a definição de padrões de desempenho objetivos. O importante agora é que as redes e escolas se organizem para a interpretar os resultados. Não é tão simples porque a escala de proficiência necessita de interpretação pedagógica.
Hugo: Não houve iniciativas nesse sentido?
Rosalina: O professor José Francisco Soares, quando foi presidente do Inep (entre 2014 e 2016), promoveu o projeto Devolutivas Pedagógicas. Por meio dele, houve divulgação dos itens das pesquisas de maneira mais facilmente compreensível, permitindo que os dados chegassem de forma mais pedagógica até os professores.
Hugo: Avaliação é sempre um tema complexo mesmo...
Rosalina: O Saeb é uma iniciativa muito importante. Temos no Brasil, de forma sistemática, desde a década de 90, uma política de avaliação que monitora a qualidade da aprendizagem. Aprendemos muito com o histórico e sabemos da importância de reformulações. O Saeb pode incidir com mais força no chão das escolas, mas para isso é necessário investir em interpretações, em divulgação de itens, de modo que os educadores possam se apropriar mais e mais dos resultados.
Além disso, os professores são historicamente responsabilizados pelo desempenho dos estudantes. Mas sabemos que há múltiplos fatores associados, tanto internos, quanto externos às escolas.
Se a direção da escola, por exemplo, é mais administrativa, todo o funcionamento pedagógico fica comprometido. O nível socioeconômico dos estudantes que frequentam a escola impacta o resultado de maneira contundente também. Há dados contextuais coletados pelo Saeb que precisam ser mais explorados e divulgados. Essas informações podem contribuir para a definição, por exemplo, de formação de gestores e para estruturar arranjos intersetoriais.
Hugo: De maneira parecida, é como têm sido tratadas as questões relacionadas às juventudes, não trazendo os jovens para o o centro do debate.
Rosalina: Exatamente. O que nos leva a uma outra reforma urgente. Temos um currículo novo para o ensino médio - a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A avaliação deste Saeb 2021 foi baseada na matriz que é de 2001. É um assunto que está parado. A avaliação do Saeb precisa passar a contar com um banco de itens atualizados de acordo com a BNCC, e que conte com um padrão de desempenho como base. Isso comunica mais facilmente os assuntos com a escola.
Hugo: Se o resultado da avaliação precisa servir para a escola, o que for apresentado precisa, impreterivelmente, ser compreendido.
Rosalina: Sim. Tomemos como exemplo as escalas utilizadas hoje. As avaliações de cada uma das séries que mencionei anteriormente (2ª, 5ª e 9ª séries do fundamental, e 3ª série do médio) são todas diferentes entre si. É preciso compreender as escalas, de modo a ampliar a nossa consciência sobre as expectativas de aprendizagem previstas na BNCC. Os resultados atuais do Saeb são 'dados para especialista', distantes da escola.
Os resultados do Saeb são 'dados pra especialista', distantes da escola.
Ideb
Hugo: Por último, mas não menos importante, fale um pouco sobre o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), por favor.
Rosalina: O Ideb considera a média como referência de qualidade, e a média é sensível aos resultados extremos. Então, por exemplo, em uma escola, podemos ter estudantes com nível de aprendizado muito baixo e outros com níveis de aprendizado adequado. A média não nos ajuda a enxergar as desigualdades de aprendizado.
Hugo: Que caminhos você proporia?
Rosalina: Será que o Ideb não precisaria ter um indicador de acesso? Dado que muitos estudantes estão fora da escola, sem conclusão da educação básica - hoje, não temos esse indicador compondo o Ideb. Será que o Ideb não precisa ter um parâmetro que mostre o nível de desigualdade de aprendizado por escola? Em um país tão desigual, não podemos deixar de acompanhar as desigualdades de aprendizagem de modo que essas informações possam nos apoiar na garantia do direito à educação para todos e todas.
Hugo: Realidades distintas analisadas mais detalhadamente, então...
Rosalina: O Ideb precisa oferecer parâmetros para avaliarmos a equidade. Temos de seguir nessa direção, na minha opinião.
Confira os resultados do Ideb 2021 aqui.
As avaliações e os professores
Além das opiniões de Rosalina Soares sobre os dados de avaliação de aprendizagem do Brasil, conversei também com Luciana Teófilo Santana, supervisora de ensino e pedagoga de São Paulo. Confira abaixo.
Hugo: Na sua opinião, o que os índices de avaliação representam para a escola?
Luciana: Em razão da metodologia pela qual tais números são divulgados, e da função que, historicamente, esses indicadores assumem - de identificar e expor escolas -, os educadores tendem a receber tudo isso de maneira bastante negativa.
Da forma como são tratados, os dados pouco dialogam com a escola. Não nos enxergamos ali. A maneira como são apresentados acaba por responsabilizar os educadores. Fica mais difícil que nós possamos ter um olhar sobre aquilo como algo que, de fato, contribua para a própria escola.
Esses usos diversos e distintos da avaliação externa acabam fazendo com que a escola tema os indicadores - ou não os aceite, não os entenda como críveis.
Hugo: O que vocês, educadoras e educadores, entendem que deveria ser um caminho positivo para a avaliação?
Luciana: Olhar para os números no sentido de que contribuam para um melhor entendimento da realidade - é o que se deseja com uma avaliação. Temos tentado ressignificar o exercício desse entendimento. O Ideb passa por uma reformulação agora.
Queremos acreditar que esse processo signifique um ajuste na direção, no rumo de dados que contemplem informações contextuais de provas, que possam ser usados, realmente, como base para a proposição de políticas públicas educacionais. Se significarem possibilidades reais de compreensão das realidades escolares, poderão ser convertidas em tomadas de decisão conectadas com um retrato fiel ao que temos nas salas de aula do país.
Avaliação tem de ser meio para viabilização das aprendizagens.
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Para despertarmos futuros, precisamos atuar no presente, calcados no conhecimento que os dados históricos nos apresentam e no permanente desejo por uma educação mais inclusiva.