Notícia: Alfabetização de idosos e adultos devolve cidadania a quilombolas em Goiás

Alfabetização de idosos e adultos devolve cidadania a quilombolas em Goiás

Uma mulher sorri diante de um senhor que está sentado diante de uma grande bancada de estudos, onde outros adultos estão estudando.
A professora Juliana com o aluno Durreis (de máscara): com metodologia do telecurso, quilombolas de 35 a 80 anos completam 1º ciclo do ensino fundamental em Goiás (Foto: Divulgação/Arthur Monteiro)

Projeto da Fundação Roberto Marinho e do governo de Goiás forma 47 alunos de 35 a 80 anos, do Quilombo Kalunga, no 1º ciclo do ensino fundamental

Uma professora que atravessava um rio com água na altura dos ombros para chegar à escola. Duas docentes que cederam as garagens de suas casas para improvisar salas de aula. Outra que alfabetizou os pais e o avô. Em comum, 47 estudantes quilombolas de 35 a 80 anos que realizaram o sonho de se formar no 1º ciclo do ensino fundamental com a metodologia de telessalas em cinco territórios do Quilombo Kalunga, o maior do país, em Goiás.

Dominga Natália Rosa é prova viva do poder transformador da educação. Aos 34 anos, ela é uma das professoras da comunidade Engenho II, distante 30 quilômetros de Cavalcante, onde aconteceu a formatura no último 9 de fevereiro. Em 2011, era ela que se formava na primeira turma de ensino médio quilombola do país, graças à metodologia do Telecurso, que usa a mediação tecnológica para levar educação a pontos de difícil acesso.

Em pouco mais de 11 anos, Dominga evoluiu acadêmica e profissionalmente. E segue os passos bem-sucedidos do prefeito de Cavalcante, Vilmar Kalunga, que foi aluno e professor do Telecurso. Ela se formou em Educação no Campo, pela Universidade Federal do Tocantins, e se tornou professora do ensino fundamental da escola municipal do Engenho II, onde já ensinou quilombolas que viraram de fisioterapeuta a médica.

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Ontem eu era estudante, hoje sou professora, porque alguém contribuiu para isso, e agora estou contribuindo para a turma. Uma das estudantes me disse que tinha vergonha de dizer quem era, hoje ela sabe o valor de ser quilombola.

Dominga Natália Rosa, professora

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Não parou por aí. Mãe de Celia e de Nícolas, de 16 e 10 anos, respectivamente, ela ainda encara uma jornada quádrupla, como dona de casa, guia de turismo local e empreendedora. É… Dominga abriu seu próprio negócio, a Hospedagem Kalunga Raios de Luz, uma extensão da sua casa, que começou com três quartos e agora já soma seis.

Por lá, os galos tecem a manhã e fazem saber o raiar do dia. Por ser um caso de sucesso no seio da comunidade quilombola, Dominga foi convidada pela Fundação Roberto Marinho para ser uma das professoras do projeto “Tecendo o Saber – Alfabetização e Família”, ao lado de Geovan Moreira, que foi seu aluno no seu ensino médio.

Uma mulher está de lado para quem a fotografou, vestindo uma roupa vermelha, com uma espécie de coroa sobre a cabeça, de onde saem fitas coloridas.
Potência: ex-aluna do Telecurso, a professora Dominga Rosa, representa a Rainha dos festejos Kalunga em atividade de formação (Foto: Divulgação/Arthur Monteiro)

Em meio ao canto noturno dos grilos, Dominga, que ainda quer cursar faculdade de Biologia, resumiu o seu sentimento durante a formatura.

“Minha cabeça estava tranquila, mas meu corpo estava ansioso, trêmulo. Algo que eu não sentia há muitos anos. É uma alegria, uma gratidão grande. Como assim está acontecendo comigo de novo? Ontem eu era estudante, hoje sou professora, porque alguém contribuiu para isso, e agora estou contribuindo para a  turma. Uma das estudantes me disse que tinha vergonha de dizer quem era, hoje ela sabe o valor de ser quilombola”, orgulha-se.

Ex-aluno trabalha com reflorestamento para ONG internacional

Um dos irmãos de Domingas, Damião dos Santos, de 37 anos, foi orador da formatura de ensino médio quilombola em 2011. Hoje, ele é encarregado de área do Instituto de Reflorestamento Eden – uma ONG internacional que atua em 10 países – e coordena uma equipe de 20 jovens quilombolas num projeto de restauração que já plantou mais de 3 milhões de mudas de 120 espécies nativas nas comunidades Kalunga ao longo de um ano.

Até 1998, os dois viviam isolados com os pais e outros irmãos num trecho da estrada de terra antes de chegar ao Engenho II. Como não havia TV, e o pai, Cirilo dos Santos, só deixava ligar o rádio na hora da “Voz do Brasil”, Damião descobriu o futebol apenas naquele ano, com as notícias atrasadas que chegavam de jornais velhos vindos de Cavalcante.

Em 2011, foi Damião que virou notícia de primeira página do jornal O Globo. Com a beca de formatura em frente ao fogão à lenha de sua casa, ele foi indicado pelo diário ao prêmio Faz Diferença, no ano seguinte, e venceu na categoria educação. Recebeu a ligação pelo orelhão do Engenho II convidando-o a receber o prêmio no Rio de Janeiro. Saiu do quilombo para ser premiado no Copacabana Palace.

De lá para cá, foi brigadista de incêndio no Engenho II em parceria com o Ibama e trabalhou para a Associação de Moradores do Quilombo Kalunga num projeto de geoprocessamento. O banco de dados está todo compilado e esperando agenda para ser entregue ao Incra, após a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Dois homens estão de pé, de frente para quem os fotografou. Atrás deles, uma parede verde com o nome do estabelecimento escrito na parte superior: "Lanchonete Cultura Kalunga".
Damião dos Santos na lanchonete do seu pai, Cirilo: o filho foi aluno do Telecurso e hoje trabalha com reflorestamento (Foto: Lauro Neto)

Pai de oito filhos, ele quer alçar voos maiores, mas sabe que a continuidade dos estudos é fundamental para isso. Damião pretende fazer faculdades de Administração e Direito quando os filhos crescerem e forem mais independentes. Empreendedor como a irmã, seu sonho mesmo é investir na sua própria agrofloresta.

“Só não tenho um cargo maior, porque não estudei mais. O pessoal quer me promover, mas não tem como. Se não tivesse estudado, não teria emprego. Fora o conhecimento, ainda tem o status. Não gosto de trabalhar como empregado. Gosto de fazer coisas que mudem a vida das outras pessoas”, diz Damião.

‘Já consigo ajudar meu neto com tarefas escolares’, diz orador

Antônio Rodrigo do Prado, de 55 anos, foi um dos oradores da formatura de ensino fundamental em Cavalcante na última quinta-feira (9). Agora, como Damião, quer ir mais longe, continuar a estudar para tirar uma carteira de motorista e criar o seu próprio negócio, um mercadinho que possa deixar para seus filhos.

“Meu sonho é aprender a dirigir trator, tirar habilitação de carro e moto. Tocar meu negócio. A educação muda tudo na nossa vida. Eu não tinha nem educação para conversar com as pessoas. Era ‘cego’. Agora, enxergo muito melhor. Acredito que, sem escolaridade, a gente não é ninguém. Já me sinto grande. Mas não vou parar por aqui”, promete Seu Antônio.

Funcionário de limpeza da prefeitura de Cavalcante, ele pertence à Vila Morro Encantado, no centro da cidade. Nascido no município de Monte Alegre, ele perdeu o pai quando ainda era criança, e sua mãe não teve condições de matriculá-lo em uma escola.

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Se tivesse ponte, chegaríamos em Minaçu em 24 minutos. Hoje, levamos três horas. Sofremos muito, mas o projeto me fez um ser humano melhor. É um sentimento imenso de alegria e gratidão.

Andréia Gonçalves Lima, professora

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Além do orgulho pela formatura, Seu Antônio sente-se satisfeito por já conseguir ajudar seu neto de 7 anos nas tarefas escolares. Um passo e tanto para quem antes tinha dificuldades até para andar pela cidade por não saber ler placas ou distinguir o banheiro masculino do feminino.

“Sem saber ler nem escrever, a gente não é nada. Eu não conseguia nem andar. Hoje, quando chego a um lugar, já sei qual banheiro posso usar. Antigamente, eu não sabia. Às vezes, meu neto chega da escola e pede pra eu ajudá-lo com trabalhos. Já consigo ajudá-lo. O estudo é tudo na vida”, ele ensina.

A professora Juliana dos Santos Silva, de 30 anos, responsável pela turma da Vila Morro Encantado, acrescenta que os alunos não aprenderam apenas a língua portuguesa e a matemática. Mais do que isso, eles resgataram a autoestima e o orgulho da identidade quilombola, da qual muitos tinham vergonha.

Ela chegou a dar aulas na garagem de sua casa durante seis meses, enquanto ainda não havia a sala disponível no Centro de Referência de Assistência Social de Cavalcante, onde foi realizada a formatura.

“Para não ficar parado enquanto não tínhamos outro espaço, ficamos na minha casa. Conforme os alunos foram estudando, eles aprenderam que tinham direitos e começaram a buscá-los para estudar, porque minha casa fica longe. Adquiriram autonomia e procuraram vereadores e o prefeito. Esse espaço tem um valor maior porque foi conquistado por eles”, explica Juliana.

Travessia de rio com água nos ombros para dar aulas

Andreia Gonçalves Lima, que lecionou para os estudantes dos territórios do Casqueiro e Vermelho, também chama a atenção para o aprendizado da cidadania e da tomada de consciência de que eles têm direitos como cidadãos. Após a cerimônia de formatura, ela e seus alunos entregaram ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado, duas cartas escritas por eles com cobranças de melhorias, como estradas e pontes.

“O governador disse que está em dívida com a nossa região e que irá fazer uma visita para ver nossa realidade. Ele prometeu nos ajudar e dar continuidade às aulas”, conta Andreia.

À direita, um homem de cabelo e camisa brancos aperta a mão de um homem de camisa vermelha. No plano anterior ao do homem de vermelho, uma mulher, também de camisa vermelha, gesticula em apoio ao homem de branco.
A professora Andreia Lima cobra melhorias nas estradas ao governador Ronaldo Caiado após a formatura (Foto: Divulgação/Arthur Monteiro)

Na saída da formatura, Caiado confirmou ao Colabora que há verbas previstas para dar continuidade ao projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, o governo de Goiás afirma que vai investir R$ 45 milhões no projeto de acessos às comunidades quilombolas Kalunga. A iniciativa está em fase de licitação.

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Estou pronto para continuar a estudar, porque um ano não é suficiente. Estudo não é igual a enxada. Já estou velho, mas meu maior sonho é continuar a estudar.

Durreis Gonçalves dos Santos, lavrador de 69 anos

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Segundo a nota, foram selecionados 80 quilômetros de estradas, eleitas por lideranças das comunidades em audiências públicas. Além disso, estaria sendo realizada a recomposição do trecho não-pavimentado da rodovia estadual GO-241, entre Cavalcante e Minaçu, que permite o acesso aos povoados do Vermelho e do Casqueiro.

Durante o inverno, Andreia precisava atravessar o Rio Preto com a água até a altura dos ombros para chegar até a escola. Para viajarem a Cavalcante no dia da formatura, a professora e seus 13 alunos saíram às 3 horas da manhã, enfrentaram mais de 400 quilômetros na estrada até chegar às 11h. Outros três formandos, que são vaqueiros, não foram autorizados a ir por seus patrões, fazendeiros.

“O motorista queria trazer meus alunos num pau-de-arara. Conseguimos uma van de 27 pessoas, mas, por ele, teriam nos colocado num caminhão. Se não for para o meu povo ser digno e se libertar desse trauma de pau-de-arara, eu não viria. Se tivesse ponte, chegaríamos em Minaçu em 24 minutos. Hoje, levamos três horas. Sofremos muito, mas o projeto me fez um ser humano melhor. É um sentimento imenso de alegria e gratidão”, resume Andreia. “Sinto mais segurança para viajar sozinha de ônibus”, diz formanda de 80 anos

Ela teve o privilégio de alfabetizar a octogenária Luiza Modesto da Silva, a mais velha dos formandos. Dona Luiza precisou trabalhar desde pequena na roça e só aprendera a escrever o nome no Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral). Agora, após se formar no ensino fundamental, a costureira aposentada tem mais autonomia e mobilidade.

“Às vezes, eu pego o ônibus para viajar sozinha para Brasília, Goiânia e Tocantins e sinto mais segurança. Me sinto muito feliz!”, celebra Dona Luiza.

Uma senhora, que usa óculos, sorri com as mãos abertas ao lado de seu rosto. Ao fundo, uma casa e o céu azul.
Dona Luiza Modesto, de 80 anos, é a formanda mais velha: ‘me sinto muito feliz!’ (Foto: Divulgação/Arthur Monteiro)

Outro idoso, o lavrador Durreis Gonçalves dos Santos, de 69 anos, teve a emoção de ser alfabetizado pela neta, Ana Lúcia Pereira Maia, de 22, no Assentamento Órfãos. Ele sofreu vários problemas de saúde ao longo da vida, como hanseníase e um derrame, que afetaram sua memória e sua fala. Durreis já havia aprendido matemática, mas, após a doença, esqueceu.

“Estou pronto para continuar a estudar, porque um ano não é suficiente. Estudo não é igual a enxada. Já estou velho, mas meu maior sonho é continuar a estudar”, revela Durreis.

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Abrimos os olhos para a vida, em todos os sentidos, ao conhecer novas tecnologias. Foi muito bom. Quero me formar em matemática. Tem vezes que faço a soma mais rápido que o celular.

Jaci Torquato, lavrador

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Nascida e criada no mesmo assentamento, a professora Ana Lúcia formou seis alunos e se orgulha de ter seu avô e seus pais entre eles. As aulas começaram numa escola local, aos fins de semana, mas, como houve problemas no espaço, o curso foi concluído na garagem de sua casa.

“No início, me sentia bem insegura, por eles serem da minha família e terem mais experiência de vida que eu. Sinto muita felicidade por saber que contribuí para a formatura deles”, comemora Ana Lúcia.

Quatro pessoas estão sentadas na área externa de uma casa, diante de livros e um laptop.
O lavrador Durreis Gonçalves, de óculos, assiste à teleaula da neta Ana Lúcia Maia no Assentamento Órfãos (Foto: Divulgação)

Pai e filha homenageiam formando morto por picada de cobra

Formada em Geografia e com pós-graduação em Educação, Política e Sociedade, Yunara da Silva Santos, de 22 anos, também deu aulas para o pai, Jaci Torquato da Silva, de 54, ambos do povoado São José. Ele parou de estudar aos 12, quando os pais se separaram. Inicialmente, foi morar com outros parentes e, depois, fugiu, com promessas de um garimpeiro, que o submeteu a serviços compulsórios após andar 120 quilômetros a pé.

“Era na roça, na carvoeira, matar formigas em grandes lavouras com inseticida, todo tipo de serviço braçal. Só recebia alimentação. Morava muito longe. Depois de quatro anos, meu pai me encontrou e me trouxe de volta”, recorda Seu Jaci.

Uma jovem e um senhor estão de pé, lado a lado. Ela sorri.
Yunara Santos deu aulas para seu pai, Jaci Torquato, no povoado São José (Foto: Divulgação/Arthur Monteiro)

Agora, depois de formado no ensino fundamental, o lavrador sonha ser professor de matemática. Para isso, foram fundamentais, além da alfabetização, aulas práticas de matemática financeira de como, por exemplo, fazer um Pix nas feiras locais.

“Abrimos os olhos para a vida, em todos os sentidos, ao conhecer novas tecnologias. Foi muito bom. Quero me formar em matemática. Tem vezes que faço a soma mais rápido que o celular. Tenho esperança de ter uma carteira assinada. Estamos emocionados sem saber se vamos ter continuidade ”, ele reconhece.

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Perdemos o aluno mais empolgado da turma. Ele pegou a empreitada de um pasto para roçar. Disse que estava pegando esse serviço porque queria comprar uma calça e um sapato novos para a formatura. Uma serpente o picou e, em 24 horas, ele morreu.

Yunara Santos, professora

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José Roberto Marinho, presidente da Fundação Roberto Marinho,  acredita que a volta ao poder do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem esteve no quilombo há 20 anos, possa ampliar a parceria educacional para a esfera federal, além da manutenção no nível estadual com a reeleição de Caiado. O projeto conta com o apoio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Instituto Humanize.

“Com o ministério da Educação qualificado que o Lula tem, e a equipe do patrimônio histórico e dos direitos humanos, com pessoas de muito boa qualidade, com certeza, vão se integrar nesse esforço e ajudar bastante. O governador também está muito disposto a ampliar os programas educativos e trazer novos projetos de desenvolvimento para cá. É uma região que vai se desenvolver de uma forma sustentável e respeitando a natureza e os recursos”, vislumbra José Roberto Marinho.

Seu Jaci e Yunara protagonizaram um dos momentos mais emocionantes da formatura ao homenagear Clíndio Ferreira da Silva, aluno de 53 anos que chegou a concluir o curso, mas morreu após ser picado por uma cobra na lavoura, em janeiro. Um carrinho de madeira confeccionado por ele em uma das aulas foi levado ao palco para simbolizar sua presença.

“Perdemos o aluno mais empolgado da turma. Ele pegou a empreitada de um pasto para roçar. Disse que estava pegando esse serviço porque queria comprar uma calça e um sapato novo para a formatura. Uma serpente o picou e, em 24 horas, ele morreu. Foi um baque bem forte. Conheci o filho dele no velório. Ele me disse que o pai tinha poucos sonhos, um deles era ser alfabetizado. Alfabetizá-lo foi o maior presente que recebi do Tecendo Saber. Clíndio queria aprender a escrever o nome todo. E foi muito além disso”, emociona-se Yunara.

Um homem sorri enquanto brinca de consertar um caminhão de madeira.
Clíndio Ferreira se formou no ensino fundamental, mas morreu antes de receber o diploma (Foto: Divulgação)

Agora, os nomes de Clíndio e dos demais alunos estão escritos não apenas nos certificados de conclusão de curso, mas na História da educação brasileira.

*Lauro Neto viajou a convite da Fundação Roberto Marinho.