Por uma educação democrática e antirracista
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O reconhecimento da beleza da nossa diversidade cultural, étnica e racial não tem sido suficiente para dissipar as desigualdades históricas construídas desde os tempos coloniais. Os mais de 300 anos de escravidão, a violenta exploração e posterior abandono da população negra, o genocídio dos povos indígenas e a construção da sociedade de classes são fatores que inviabilizam o pleno exercício da cidadania. Mesmo nos momentos mais democráticos não fomos capazes, como nação, de atacar frontalmente o racismo. Ainda que o seu reconhecimento como crime inafiançável e imprescritível tenha sido um grande passo na construção da democracia, a ordem legal não tem sido suficiente para desmontar a máquina racista.
A desigualdade econômica, social, racial, de gênero e de orientação sexual faz parte da estrutura social do nosso país. Portanto, viver e ser educado, no Brasil, em uma perspectiva democrática de educação significa, do ponto de vista escolar, aprender desde a educação infantil até o ensino superior que convivemos com um histórico de opressões e violências que recaem com maior contundência sobre certos coletivos sociais e étnico-raciais. E numa democracia plena, ninguém deveria ficar de fora dos direitos civis, sociais, políticos, humanos e econômicos, principalmente devido a sua raça/cor, à sua diferença. Se isso acontece, significa que ainda falta muito para atingirmos a emancipação, a igualdade e a equidade no projeto democrático que estamos construindo.
Um dos impedimentos para a realização desse projeto é a presença do racismo estrutural em nossas instituições e relações sociais. Por racismo estrutural identificamos um longo processo político e histórico que cria e mantém as condições para que mecanismos de subordinação e exclusão de determinados grupos racialmente identificados sejam naturalizados e justificados. Assim compreendido, o racismo estrutural encontra no mito da democracia racial, na ideologia do branqueamento e na desigualdade de classes e de gênero, formas de se espraiar e se radicar nas estruturas, na cultura, nas mentalidades, nos comportamentos e nas ações.
Em um país racista, não basta dizer que queremos uma educação democrática e com qualidade social para que negras e negros tenham o direito de permanecer na escola com dignidade desde a educação básica ao ensino superior. E para que os não negros aprendam a ser antirracistas. Há que se mexer nas relações de poder, nos espaços de representação política, no mercado de trabalho, bem como nas diretrizes e nas bases da educação. Há que se modificar currículos, formação de professoras e professores, inovar os processos de gestão. E, simultaneamente, é necessário lutar pela democratização da sociedade e pela garantia de direitos, principalmente para os excluídos dentre os quais, encontra-se a população negra.
É com essa perspectiva de denúncia e anúncio que devemos compreender o sentido da legislação brasileira relativa à educação para as relações raciais. Mais do que ensinar a história e a cultura dos afro-brasileiros e dos africanos em disciplinas específicas nas escolas da educação básica, a Lei 10.639/03 (que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB) e sua regulamentação pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana e um plano nacional específico para a sua implementação.
A partir dos artigos 26 A e 79 B, o CNE adensou e estipulou áreas de abrangência, responsabilidades e instruiu formas de implementar essa legislação em toda a educação básica e na formação inicial de professoras e professores.
Não é somente do ensino que se trata essa mudança da legislação. Ela diz respeito a articulação entre educação democrática e antirracista. A LDB explicita um importante princípio educacional: toda educação democrática deve ser antirracista e toda educação antirracista deve ser democrática.
Por quê? Porque vivemos em um país ao mesmo tempo diverso e desigual. Há mais riqueza nesta diversidade do que o racismo nos deixa enxergar. Há mais desigualdade do que o racismo nos deixa compreender. Mas, como educadoras e educadores, sabemos que não se democratiza e nem se constrói o antirracismo na educação se não o fizermos na sociedade. Nossos projetos de reconstrução e transformação do Brasil precisam incorporar o enfrentamento ao racismo em todas suas profundas e complexas articulações. Mas, é preciso lembrar Paulo Freire: a educação não é suficiente para mudar a sociedade, mas sem seu concurso, não haverá mudanças. Que lugar tem a educação na construção de uma sociedade democrática e antirracista?
* Nilma Lino Gomes é ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos. Professora Emérita da UFMG. É consultora da Fundação Santillana para Políticas Antirracistas.