Trilha: Crescer sem violência: Primeira infância, seus direitos e particularidades de desenvolvimento

Crescer sem violência: Primeira infância, seus direitos e particularidades de desenvolvimento

Acompanhe nesta trilha uma reflexão sobre as novas normativas e os desafios da garantia de direitos da Primeira Infância no Brasil.

Abertura

Ao longo da história da humanidade, os primeiros anos de vida eram encarados como um período de dependência e imaturidade até que o indivíduo estivesse apto a trabalho e a servir, ainda na infância. Esta percepção foi sendo alterada ao longo dos séculos, mas foi somente em 1924 que a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança começou a afirmar os direitos de todas as crianças a uma educação de qualidade e universal, à proteção social e demais meios para garantir seu desenvolvimento integral.

Desde então, no Brasil, várias leis começaram a serem criadas para assegurar os direitos desta parcela da população, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, mais recentemente, o Marco Legal da Primeira Infância. Apesar da existência destas normativas, os altos índices de diferentes tipos de violência contra a primeira infância no Brasil mostram que estamos muito longe de trata-los como pessoas íntegras, com etapas de crescimento e desenvolvimento respeitados. Crianças de até 05 anos, por exemplo, foram as principais vítimas de violência sexual contra crianças e adolescentes em 2020 (51% dos casos), segundo o Disque 100.  Uma análise do Unicef sobre as mortes violentas registradas contra pessoas de até 19 anos entre 2016 e 2020 mostra que existe uma tendência de aumento de vítimas de até 4 anos, o que traz um sinal de alerta para toda a sociedade.

Acompanhe nesta trilha uma reflexão sobre as novas normativas e os desafios da garantia de direitos da Primeira Infância no Brasil.

Um ser em desenvolvimento e com direitos garantidos

Segundo estudos da Psicologia do Desenvolvimento, infância é um período de mudanças bio-psico-sociais, que concentra desde o momento do nascimento até a entrada na puberdade, por volta dos doze anos de idade. Durante esse período a criança passa por transformações que serão fortemente influenciadas pelo contexto que os cercam e pelas experiências que irão vivenciar ao longo desse tempo. Esta abordagem é adotada pela Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990 e, anos depois, pelo nosso Marco Legal pela Primeira Infancia.

A primeira infância é uma fase crucial do desenvolvimento humano que perdura até os 6 anos de idade, em que ocorrem construções fundamentais, desde físicas até emocionais e cognitivas, que formam a base da personalidade e das competências humanas necessárias para toda vida. Voltado para crianças brasileiras nesta fase de desenvolvimento, o Marco Legal da Primeira Infância foi instituído em 2016 e trouxe atualizações ao ECA, ao Código de Processo Penal, à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)  e para outras leis que atendam as especificidades desta parcela da população.

Entre as inovações da legislação estão a qualificação de profissionais que atendem especificamente meninos e meninas na primeira infância, a ampliação da licença-paternidade, o direito à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar para gestantes e mães apenadas, entre outras. A proposta é pautada em uma prática mais alinhada do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes e, por consequência, em uma maior efetividade da regra da prioridade absoluta determinada no art. 227 da Constituição Federal.

Links:
“Não existiam crianças antes do século XX”, de Band Jornalismo
- “Olhar para a primeira infância”, de Criar e crescer

Infâncias sim, e no plural

Em um país amplo e diverso como Brasil, os marcadores de gênero, raça, classe e deficiência na infância precisam ser o ponto de partida para pensarmos qualquer perspectiva de promoção de acesso à direitos. Crianças com deficiência, indígenas, negras, brancas, de diferentes contextos sociais ou até regiões geográficas não são vistas ou tratadas da mesma maneira pela sociedade como um todo, não tem sua cidadania reconhecida da mesma forma e não conseguem acessar direitos e políticas públicas de forma igualitária. Estes marcadores interseccionais acabam por definir a forma com que serão acolhidas pela família, pelos profissionais de educação, pelos equipamentos de saúde e assistência social e, consequentemente, irão moldar seu desenvolvimento e as oportunidades que terão na vida.

Por este motivo, o entendimento da existência de múltiplas infâncias colabora para a construção de políticas públicas diversas, que atuem de forma mais assertiva para cada um destes públicos. A presença da diversidade na elaboração dessas normativas é de suma importância para garantir o atendimento adequado a cada realidade e o respeito aos contextos em que estas crianças estão inseridas. Da mesma maneira, todo Sistema de Garantia de Direitos (escolas, postos de saúde, serviços de assistência social etc.) também devem ter um olhar atento para a diversidade, a representatividade e todas as suas especificidades nos planejamentos organizacionais. 

Links:
- “Lápis cor-da-pele”, as série Que Corpo É Esse?
- Cadernos setoriais “PIA – Primeira Infância Antirracista”, do Unicef e Instituto Promundo
“A importância da representatividade na Infância”, da CNN

Um corpo que fala desde os primeiros momentos de vida

Como vimos nas etapas anteriores, o reconhecimento da condição da criança como sujeito de direitos é um fato recente na história mundial. Quando consideramos o recorte da primeiríssima infância, apesar das legislações já vigentes, os direitos das crianças ainda permanecem mais na teoria do que na prática. De maneira geral, adultos se comunicam pouco com bebês, não entendem suas expressões corporais e os tratam quase como um objeto à sua disposição. Um exemplo disso é a gravidez, período em que a barriga da mulher é acarinhada muitas vezes até por desconhecidos. O mesmo ocorre quando os bebes nascem: muitos adultos querem pegar no colo, tirar foto, beijar, sentir o cheiro, opinar na criação, vestir a criança com roupas desconfortáveis, furar a orelha achando que a criança não sente dor e chegam a exibi-los na internet das mais variadas formas (até sem roupa).

Ao contrário do que muitos pensam, ainda na barriga da mãe o embrião humano já possui estruturação para o desenvolvimento da linguagem, e, muito antes de desenvolver a capacidade de ouvir, o feto já é capaz de captar os sons das palavras emitidas pela voz materna, com todas as emoções que as acompanham. Da mesma forma, já “do lado de fora”, são capazes de se comunicar através de sinais como expressão facial, movimentos corporais e até pelo choro. Ou seja, já conseguem demonstrar desconfortos, descontentamentos e o que lhes dão prazer desde sempre, e estes sinais vão se complexificando a medida em que crescem. Por este motivo, é preciso conhecer e considerar as diferentes fases de desenvolvimento da criança para saber o que esperar do comportamento de cada uma delas.

Link:
- “O presente de Ariel” da série Que Corpo É Esse?

Segurança e proteção para um desenvolvimento pleno

As experiências vividas nos primeiros anos de vida determinam a nossa estrutura neural para o desenvolvimento das habilidades físicas, cognitivas e socioemocionais que se estendem por toda a vida. Por este motivo, é muito importante que crianças cresçam em um ambiente acolhedor, enriquecedor e protetivo.

 Os comportamentos de violência dos responsáveis são um grande desafio à proteção básica de crianças na primeira infância, e normalmente são motivados por uma falta de conhecimento dos comportamentos que são esperados em cada fase de desenvolvimento. Crianças pequenas normalmente agem de maneira desafiadora porque estão querendo ou sentindo algo que ainda não conseguem traduzir em palavras, precisam de ajuda para entender e verbalizar o que sentem. Por isso, muitas vezes consideramos como “birra” o que é um comportamento próprio de cada idade, levamos as atitudes da criança para o lado pessoal e atuamos de forma autoritária ou agressiva, eximindo-nos da responsabilidade de mostrar o que realmente é esperado do comportamento dela.

A parentalidade positiva e a comunicação não violenta são formas de se relacionar com crianças e adolescentes considerando estas particularidades de desenvolvimento, observando seu comportamento, sentimentos e o que estão aprendendo em cada situação vivida. É importante pautar que um tratamento acolhedor e digno não é generosidade dos responsáveis: é um direito que tem de ser cumprido.

Links:
- “Papo de gente grande” da série Que Corpo É Esse?
- Caderno “O Cuidado Integral e a Parentalidade Positiva na Primeira Infância”, do Unicef

A importância da escuta atenta e acolhedora

Dentro dos mitos historicamente naturalizados em nossa sociedade sobre crianças pequenas está a ideia de que esta parcela da população é muito inventiva e, por vezes, fantasia situações de seu cotidiano. Entretanto, dados do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes apontam que somente 6% dos casos de abuso sexual relatados por uma criança são mentiras. Ela pode ter dificuldade de usar as palavras ou de entender com clareza a violência que sofreu, mas ela compreende que foi vítima de um ato que não foi adequado, que a machucou de alguma forma e tenta relatar à sua maneira. Muitas vezes estas formas incluem desenhos, brincadeiras impróprias para a idade, perguntas para saber se determinado toque ou comportamento do adulto são adequados, mudanças de humor, tristeza, crises de choro repentinas, repulsa a determinada pessoa próxima, pesadelos, entre outros.

Quando se trata de uma violência ocorrida no ambiente doméstico ou por uma pessoa com vínculo muito íntimo, por vezes ela tem medo de relatar por imaginar que a família vá sofrer consequências. Por esse motivo, é muito importante acolher e acreditar quando uma criança relata uma situação de violência para qualquer pessoa, independente de ter laço familiar ou não. O relato espontâneo de uma criança só ocorre em situações em que ela se sente confortável e segura com a pessoa que recebe a informação, e, quando o adulto desconsidera o seu relato, ela se sente desamparada.

Links:
- “Direitos da infância com Itamar Gonçalves”, do Canal Futura
- “É preciso ouvir”, da série Que abuso é esse?

“É preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança”

Conforme vimos anteriormente, o Estado, a sociedade e a família têm o dever de assegurar todos os direitos e garantias às crianças: saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, cultura, entre outros. Entretanto, no Brasil, é comum atribuir aos pais, mais especificamente à mãe, a responsabilidade quando uma criança se machuca, está doente ou precisa de cuidados de toda ordem.

O provérbio nigeriano “é preciso uma vila inteira para criar uma criança” tem sido usado recentemente para difundir a ideia de que a responsabilidade com o cuidado dos pequenos não é só dos pais, mas de toda a sua família e da comunidade em que está inserido. O ECA responsabiliza todos no papel de proteção, independente de vínculo sanguíneo: avós, tios, vizinhos, professores, cuidadores, profissionais de saúde, assistência social e todos aqueles que se relacionam diretamente com crianças precisam entender que também são responsáveis pelo seu bem-estar, assim como devem denunciar possíveis violações de direito que ocorram desde a primeira infância.

Precisamos pensar na prática de cuidado como responsabilidade de toda a sociedade, cada um com o seu papel dentro do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes.

Link:
Uma aldeia para criar uma criança,  “Que Corpo É Esse?"
Animação sobre o Sistema de Garantia de direitos - Que Corpo - É Esse?
Cartilha “ Comunidade Escolar na Prevenção e Resposta às Violências” do Unicef

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